Há alguns dias da eleição, textos que tentam avaliar o processo eleitoral e as posições que se constituíram ou se mostram nele são bastante numerosos, havendo desde posturas de direita que acreditam, ou querem acreditar, em correntes de emails estapafúrdias até posturas de esquerda que defendem saídas stalinistas para conflitos contemporâneos. Em todo o espectro, de lado a lado, piadas contra piadas, sarcasmos, cinismos ou então certa decepção blasé.
Nesse panorama, ganham ênfase algumas tomadas de posição que vou chamar “complexas”, mesmo que, às vezes, segundo entendo, enganadas ou enganosas. Um caso seria o editorial do Estadão abrindo apoio para José Serra. A cada linha, evidencia os interesses em jogo e acaba sendo, caso bem estudado, ferramenta para as esquerdas. Falta bastante, é claro, para que os editorialistas do Estadão considerem os interesses populares ao menos tão densos quanto os seus próprios, ao invés de tratar todos os que votam no PT como descerebrados, incultos e incapazes.
Para contrapor a tomada de posição "complexa", considero uma tomada de posição “tão complexa quanto possível” aquela que considera complexo o seu adversário político e que tenta considerar o adversário como um sujeito político pleno, não apenas sujeito de argumentos, mas de práticas sociais, avaliando e reconstruindo com calma e respeito esses argumentos e as práticas correlatas ou contraditórias em relação a esses argumentos. É evidente como falta isso aos editorialistas do Estadão, mas acho que devemos, os que pretendem não se conformar em ser ex-esquerda, pensar nas condições que podem nos manter em posições “tão complexas quanto possível”.
Isso não quer dizer, evidentemente, que o humor, o sarcasmo, o cinismo, a gozação e o riso não devam fazer parte dos debates políticos. Estruturas realmente democráticas de debate abrem espaço para diversas posturas e tonalidades, todas, a princípio, bem vindas. Mas acho que entre as posturas discerníveis nos debates dessa eleição, uma das mais raras é a do militante que respeita democraticamente, ponderadamente, seu adversário.
Para continuar com o Estadão: reconheço em Daniel Piza um articulista cuja posição tem complexidade e maturidade, mas também reconheço que essa posição complexa e madura está construída pelos limites da atividade jornalística num órgão como o Estadão. Mas quero me ater a um argumento. A insistência de Piza na continuidade entre o governo FHC e o governo Lula me parece um equívoco ou ao menos uma insistência que não explica os saltos na quantidade de consumidores de classe média, na distribuição de renda e no atendimento às populações de baixa ou nenhuma renda. Contudo, se venho a público e aponto o que me parece ser um engano de Piza, não vejo razão nenhuma para ter completa fé nos meus próprios argumentos a respeito do mesmo assunto. E aqui está o ponto: estar aberto à construção, complexificação e alteração de argumentos e ações pontuais não significa alterar ou negociar princípios, como Edward W. Said procurou mostrar em seu livro Representações do intelectual.
Digo isso porque não é raro que, entre as esquerdas, nas quais eu me posiciono como parte, haja posturas que digam que levar em conta argumentos como os de Piza equivaleria a assumir as posições que ele assume ou, ao menos, a criar um certo compromisso com elas. A meu ver, certamente precisamos – à esquerda – estar atentos a todo tipo de comportamento que denota compromisso ou moleza frente ao que consideramos injusto ou canalha. Mas uma coisa é marcar, fortemente, a contrariedade, outra coisa é se dar o trabalho de construir cuidadosamente os argumentos e práticas sociais daqueles que consideramos ser pontos de vista contrários ao nossos.
Veja-se, por exemplo, que a tese da continuidade entre os governos FHC e Lula também é postulada pelo economista Francisco de Oliveira. Em seu artigo, “O ornitorrinco”, Oliveira fala em “convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB”. Os argumentos de Piza e o de Oliveira são semelhantes, mas são construídos a partir de posições contraditórias, até mesmo inconciliáveis. Em outros termos, não se pode reduzir argumentos a meros argumentos, justamente porque a coincidência das teses não leva Piza e Oliveira a terem a mesma opinião, nem posições sociais semelhantes. Se levamos em conta qual o horizonte social dos argumentos, de onde eles são criados, para quem, com quais conseqüências fica evidente que os dois estão falando de coisas diferentes. É por isso que, se a posição de esquerda é enraizada no chão social e não uma tomada de posição meramente intelectualóide, ela não tem porque temer incorporar e utilizar argumentos e espaços, seja lá quais forem.
Estou tentando dizer que as contradições sociais podem ser utilizadas como instrumentos para a complexificação da prática das esquerdas. Ver no outro um idiota mesquinho pode funcionar para vias de sarcasmo, descarte ou reforço da diferença. Às vezes se torna um dos momentos da discussão, conforme for o espaço e o propósito. Para lá disso, considerar a complexidade das posições disponíveis hoje no tecido social é tarefa importante. O mapeamento das posições não pode ser entregue a atitudes classificatórias simplistas. Isso tudo é trabalhoso, exige pensar e deslocar aquilo que já está pensado e que bastaria ser reconhecido.
As esquerdas, ao longo dos últimos dois séculos, têm feito sempre o trabalho de pensar o que muitas posições sociais dão de barato como já pensado, cristalizado, pronto. É importante dar continuidade a esse tipo de reflexão, sem, quero repetir, descer para compromissos e acordos com posições criticáveis. A alegria e o riso estão nas raízes dos pensamentos populares. São tanto mais contundentes quanto mais dizem respeito às contradições fundamentais de dada organização social, tanto menos contundentes quanto mais apelam a fantasias, repetições e estereótipos.
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