Peter Szondi (1929-1971), autor de "Teoria do drama moderno" e "Ensaio sobre o trágico", entre outros. Sua "teoria da mudança estilística" aprofundou os desenvolvimentos da tradição dialética, de Hegel, Georg Lukács e Walter Benjamin. Publicando sua foto, o blog presta uma homenagem ao trabalho de Szondi e lembra dos 40 anos de sua morte, em 18 de outubro.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Deboche e debate


Há alguns dias da eleição, textos que tentam avaliar o processo eleitoral e as posições que se constituíram ou se mostram nele são bastante numerosos, havendo desde posturas de direita que acreditam, ou querem acreditar, em correntes de emails estapafúrdias até posturas de esquerda que defendem saídas stalinistas para conflitos contemporâneos. Em todo o espectro, de lado a lado, piadas contra piadas, sarcasmos, cinismos ou então certa decepção blasé.
Nesse panorama, ganham ênfase algumas tomadas de posição que vou chamar “complexas”, mesmo que, às vezes, segundo entendo, enganadas ou enganosas. Um caso seria o editorial do Estadão abrindo apoio para José Serra. A cada linha, evidencia os interesses em jogo e acaba sendo, caso bem estudado, ferramenta para as esquerdas. Falta bastante, é claro, para que os editorialistas do Estadão considerem os interesses populares ao menos tão densos quanto os seus próprios, ao invés de tratar todos os que votam no PT como descerebrados, incultos e incapazes.
Para contrapor a tomada de posição "complexa", considero uma tomada de posição “tão complexa quanto possível” aquela que considera complexo o seu adversário político e que tenta considerar o adversário como um sujeito político pleno, não apenas sujeito de argumentos, mas de práticas sociais, avaliando e reconstruindo com calma e respeito esses argumentos e as práticas correlatas ou contraditórias em relação a esses argumentos. É evidente como falta isso aos editorialistas do Estadão, mas acho que devemos, os que pretendem não se conformar em ser ex-esquerda, pensar nas condições que podem nos manter em posições “tão complexas quanto possível”.
Isso não quer dizer, evidentemente, que o humor, o sarcasmo, o cinismo, a gozação e o riso não devam fazer parte dos debates políticos. Estruturas realmente democráticas de debate abrem espaço para diversas posturas e tonalidades, todas, a princípio, bem vindas. Mas acho que entre as posturas discerníveis nos debates dessa eleição, uma das mais raras é a do militante que respeita democraticamente, ponderadamente, seu adversário.
Para continuar com o Estadão: reconheço em Daniel Piza um articulista cuja posição tem complexidade e maturidade, mas também reconheço que essa posição complexa e madura está construída pelos limites da atividade jornalística num órgão como o Estadão. Mas quero me ater a um argumento. A insistência de Piza na continuidade entre o governo FHC e o governo Lula me parece um equívoco ou ao menos uma insistência que não explica os saltos na quantidade de consumidores de classe média, na distribuição de renda e no atendimento às populações de baixa ou nenhuma renda. Contudo, se venho a público e aponto o que me parece ser um engano de Piza, não vejo razão nenhuma para ter completa fé nos meus próprios argumentos a respeito do mesmo assunto. E aqui está o ponto: estar aberto à construção, complexificação e alteração de argumentos e ações pontuais não significa alterar ou negociar princípios, como Edward W. Said procurou mostrar em seu livro Representações do intelectual.
Digo isso porque não é raro que, entre as esquerdas, nas quais eu me posiciono como parte, haja posturas que digam que levar em conta argumentos como os de Piza equivaleria a assumir as posições que ele assume ou, ao menos, a criar um certo compromisso com elas. A meu ver, certamente precisamos – à esquerda – estar atentos a todo tipo de comportamento que denota compromisso ou moleza frente ao que consideramos injusto ou canalha. Mas uma coisa é marcar, fortemente, a contrariedade, outra coisa é se dar o trabalho de construir cuidadosamente os argumentos e práticas sociais daqueles que consideramos ser pontos de vista contrários ao nossos.
Veja-se, por exemplo, que a tese da continuidade entre os governos FHC e Lula também é postulada pelo economista Francisco de Oliveira. Em seu artigo, “O ornitorrinco”, Oliveira fala em “convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB”. Os argumentos de Piza e o de Oliveira são semelhantes, mas são construídos a partir de posições contraditórias, até mesmo inconciliáveis. Em outros termos, não se pode reduzir argumentos a meros argumentos, justamente porque a coincidência das teses não leva Piza e Oliveira a terem a mesma opinião, nem posições sociais semelhantes. Se levamos em conta qual o horizonte social dos argumentos, de onde eles são criados, para quem, com quais conseqüências fica evidente que os dois estão falando de coisas diferentes. É por isso que, se a posição de esquerda é enraizada no chão social e não uma tomada de posição meramente intelectualóide, ela não tem porque temer incorporar e utilizar argumentos e espaços, seja lá quais forem.
Estou tentando dizer que as contradições sociais podem ser utilizadas como instrumentos para a complexificação da prática das esquerdas. Ver no outro um idiota mesquinho pode funcionar para vias de sarcasmo, descarte ou reforço da diferença. Às vezes se torna um dos momentos da discussão, conforme for o espaço e o propósito. Para lá disso, considerar a complexidade das posições disponíveis hoje no tecido social é tarefa importante. O mapeamento das posições não pode ser entregue a atitudes classificatórias simplistas. Isso tudo é trabalhoso, exige pensar e deslocar aquilo que já está pensado e que bastaria ser reconhecido.
As esquerdas, ao longo dos últimos dois séculos, têm feito sempre o trabalho de pensar o que muitas posições sociais dão de barato como já pensado, cristalizado, pronto. É importante dar continuidade a esse tipo de reflexão, sem, quero repetir, descer para compromissos e acordos com posições criticáveis. A alegria e o riso estão nas raízes dos pensamentos populares. São tanto mais contundentes quanto mais dizem respeito às contradições fundamentais de dada organização social, tanto menos contundentes quanto mais apelam a fantasias, repetições e estereótipos.

domingo, 19 de setembro de 2010

Representações do intelectual, de Edward W. Said

Por exemplo, a diferença que delineei entre o intelectual profissional e o amador reside precisamente no fato de que o primeiro alega distanciamento com base na profissão e aparenta ser objetivo, enquanto o segundo não é movido nem por recompensas nem pela realização de um plano de carreira imediato, mas por um compromisso empenhado com ideias e valores na esfera pública.
Mais adiante, citando Jean Genet: "quem não quiser ser político não deve escrever ensaios nem falar publicamente".

Os trechos acima estão na p.111 do livro Representações do intelectual, volume em que Edward W. Said reúne seis conferências que o autor escreveu para a BBC, em 1993 – as “Conferências Reith”. A tradução é de Milton Hatoum.
Os “intelectuais” apolíticos da Zero Hora fariam bem em ler esse tipo de coisa antes de ir para as reuniões do DEM e do PP. O jornalismo nas grandes empresas do Rio Grande do Sul se tornou uma metralhadora autoritária por trás da qual homens e mulheres continuam defendendo a possibilidade de ser objetivos e isentos frente às contradições sociais. Pior é que fazem isso no momento em que vêm a calhar definir posições e falar a partir delas, afinal, essa atitude está suposta numa estrutura democrática. Ainda mais preocupante do que as opiniões-não-opiniões e do que as políticas-apolíticas é a defesa de que inexistem contradições sociais ou de que elas apenas surgem quando os movimentos sociais, alguns sindicatos e meia dúzia de intelectuais preferem perturbar a vida social que, de outro modo, levaria ao melhor dos mundos possíveis.
Em todas as conferências de seu livro, Said reflete a respeito da posição do intelectual como posição à margem, que sofre, por vezes, o exílio, a exclusão e a falta de reconhecimento por insistir em falar a partir do ponto de vista dos exilados, excluídos, dos que não conseguem reconhecimento. Na palestra dois, “Manter nações e tradições à distância”, Said lembra de Walter Benjamin e Virginia Woolf. O que há de mais importante para o intelectual, escreve Said, partindo de Woolf, é representar ideias, valores e pessoas a quem não foi dado um lugar de trabalho, um quarto que lhes pertença.
Conforme a terceira palestra, tal postura muitas vezes torna o intelectual uma espécie de “pária permanente”. Nessa palestra, Said procura distinguir dois tipos de intelectuais exilados: os que se adéquam à vida no novo país – como os “novos americanos”, que cooperaram na guerra fria ou ainda gente como Kissinger – e os que não se acomodam, resistem, não se deixam cooptar e pagam o preço disso levando vidas mais obscuras e dificultosas.
Em outras palavras, haveria intelectuais “consonantes” e “dissonantes”. A dissonância seria exílio – e exílio não somente como uma condição social, mas também como uma condição metafórica. Um exemplo do dissonante seria Adorno, contrário ao fascismo, ao comunismo e à sociedade de consumo de massa – um “intelectual por excelência”.
Said traz outro exemplo de vida intelectual – vou usar esse termo, “vida intelectual” –, a do filósofo Giambatista Vico. Nesse caso, o autor salienta o empenho para historicizar as relações humanas, de entender a vida humana como resultado de decisões e ações de homens e mulheres. “Não podemos escolher um caminho prescrito”, escreve.
Na quarta palestra, “Profissionais e amadores”, Said postula que um dos problemas que os intelectuais enfrentam ao lidarem com os poderes seria o profissionalismo. Isto não significa apenas escrever e pensar através de jargões incompreensíveis – o que, para Said, seria de menor importância –, significa sobretudo praticar a escrita e a fala como um “bajulador profissional”. Uma contraposição ao profissionalismo adviria do amadorismo, isto é, entregar-se ao estudo, à escrita, à fala não porque isso dá dinheiro ou reputação, mas com “dedicação” e “afeição”.
Em outra palestra, Said defende que o intelectual precisa se posicionar claramente a respeito dos conflitos concretos, tomando como base valores compartilhados ou reconhecidos – a liberdade de expressão, a ilegalidade de ataques de povos sobre povos –, mas sempre de um ponto de vista de contraposição ao “nós” que se coloca como autoridade frente ao “eles”. Isto é, a utilização de valores compartilhados e reconhecidos não é uma capitulação do princípio de marginalidade do intelectual. Ele não fala para o poder, mas contra o poder e suas representações.
Cito:
nada é mais repreensível do que certos hábitos de pensamento do intelectual que induzem à abstenção, àquele desvio tão característico de uma posição difícil e embasada em princípios, que se sabe ser a correta mas que se decide não tomar. Você não quer parecer muito político; você tem medo de parecer controverso; você precisa da aprovação de um chefe ou de uma figura de autoridade; você quer manter uma reputação de pessoa equilibrada, objetiva, moderada; su esperança é tornar a ser convidado, consultado, ser membro de um conselho, comissão ou comitê de prestígio, e assim continuar vinculado à esfera do mainstream; algum dia você espera conseguir um grau honorífico, um grande prêmio, talvez até uma embaixada. (p.102)
Said defende que é fácil ser contrário ao terror e à agressão, em abstrato, mas é difícil para um intelectual ocidental reconhecer e expressar o terror de Israel contra a Palestina, por exemplo. Nesse caso, o intelectual fajuto pode optar por elogiar a democracia israelense ou o diálogo e a negociação, sem procurar conhecer as relações de poder e força tais como ocorrem no dia-a-dia ou seja sem compreender o sofrimento concreto que essas relações podem causar.